A VOZ e a MOCHILA

Hoje, enquanto fazia minha caminhada matinal, fiz um desvio perto da escola do meu filho.  Ruas estreitas, tortuosas, quase que me perdi por ali, mas consegui sair numa das ruas principais do bairro, que vai dar na Edgar Facó, uma movimentada avenida do bairro onde tem uma ciclofaixa (anterior à atual administração) e uma pista de caminhada.

Quando virei à esquerda na esquina, seguindo para a avenida, alguém que vinha pela rua ficou logo atras de mim.  A principio não vi quem era.  Apenas ouvi sua voz.  Uma voz forte, clara, com boa dicção. Rapidamente percebi que a pessoa falava sozinha.  Era uma jovem, não deu pra dizer a idade.  Estava em farrapos, envolva em uma manta puída, como fazem os moradores de rua logo pela manhã, que nem estava assim tão fria hoje. Não devia ter mais que 30, 35 anos…não dava pra saber.  Estava coberta de trapos, cabelos desarrumados sobre o rosto.  Abraçava uma mochila, que levava alçada num só ombro e meio aberta, por onde se viam vários objetos, irreconhecíveis.  Talvez tudo o que ela possuía.

Era uma jovem alta, talvez acima dos 1,75m.  Magra, como geralmente os moradores de rua são. Mas a voz destoava. Falava alguma coisa sobre a mochila que carregava.  Dizia que agora podia levar suas coisas e ninguém mais iria tomá-las dela.  Quando viu que eu havia parado e me virado para observa-la, desviou o olhar, agarrou ainda mais a mochila, fechando-a e protegendo seus preciosos pertences, e atravessou a rua, resmungando algo que não pude entender.

Mas era uma bela voz.  Dessas que se ouve na rádio, nos avisos do metrô ou nos corredores dos grandes supermercados. Certamente como me chamou a atenção, deve ter chamado a atenção de muita gente à sua volta, no seu circulo de relacionamento.  Antes de acabar ali, agarrada à sua valiosa mochila.

Como alguém como uma voz tão bonita, que articulava tão bem as palavras, podia ter chegado àquela situação. “O que alguém precisa fazer para ficar assim?” pensei a principio.

E continuei minha caminhada.

Um pouco mais a frente, uma resposta àquela pergunta me ocorreu: nada.  Não precisamos fazer nada para ficar naquela situação. Aquela moça, delirando na rua agarrada à sua preciosa mochila não fez nada para chegar ali.  Ela é exatamente o que todos nós somos, na essência: nós mesmos, nossos pensamentos, a roupa do corpo e o que couber em nossa mochila.

Todo o resto nos vamos buscar. Lutamos diariamente para conquistar. Nossa família por perto, nossos amigos, nossos conhecidos.  Nosso trabalho, nossas conquistas.  Tudo é fruto de algo que fizemos.   Não só que fizemos no passado, como continuamos a fazer no presente.  Pois, se pararmos, voltamos a ser só nós e nossa mochila.

Não sei os dramas pessoais, familiares, médicos que essa moça enfrentou e ainda enfrenta.  Mas certamente ela estava ali, reduzida à essência do que todos nós somos.  Uma voz e uma mochila!

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