As ciclofarsas e a vontade de mostrar serviço

A criação das ciclofaixas é uma iniciativa válida em qualquer grande cidade para incentivar o uso de meios alternativos de transporte, principalmente a saudável bicicleta. Porém não se pode sair pintando faixas pelo chão da cidade e chamando isso de ciclofaixas. Muito menos atribuir à bicicletas a tarefa de “desenroscar” o trânsito de uma grande cidade.

É necessário um projeto bem elaborado, com discussão com todos os envolvidos, análise dos efeitos, dimensionamento da necessidade e, principalmente um planejamento da interferência urbana que isso vai causar; como serão os acessos às faixas, qual será o suporte nos pontos de chegada, os incentivos à criação de pontos de apoio (bicicletários, vestiários e garagens apropriadas nos prédios públicos e comerciais etc.).  A faixa no chão, sozinha, não é uma faixa: é uma farsa. Serve apenas como um dado numérico para se colocar na propaganda política nas próximas eleições.

Em São Paulo temos 250 mil viagens diárias de bicicletas.  E são 14 milhões de deslocamentos não motorizados (de bicicleta ou a pé).  Porém, são 29 milhões (dados de 2012) de deslocamentos motorizados por dia (transporte público e privado).  Portanto, para que o transporte por bicicletas atraísse 5% das viagens diárias, seria necessário crescer de 250 mil para quase 1,5 milhão, ou seis vezes mais do que o patamar atual. Impraticável no curto e médio prazos.

Para se ter uma ideia de como é complexa essa implantação, no vídeo abaixo está um resumo de como Amsterdã criou sua incrível malha viária voltada para bicicletas e como chegou a se tornar a cidade com maior concentração de bicicletas por habitante.

Não é uma tarefa fácil.  Existem vários complicadores, a começar pelo nosso código de trânsito, que estabelece certos comportamentos e regras para as bicicletas que não estão sendo respeitados sequer pelas ciclofarsas pintadas no chão da cidade.  Por exemplo: ciclofaixas não podem invadir faixas de pedestres.  E muitas foram pintadas sobre as faixas de pedestres, tirando por completo o espaço e a segurança do pedestre ao atravessar uma rua. Elas também não podem ser colocadas sobre as calçadas, porém foram pintadas em vários bairros (notadamente na periferia) faixas sobre as calçadas, novamente tirando o espaço do pedestre.
O que se precisa é parar com essa atitude de reagir às manifestações populares com atitudes criadas por marqueteiros, que só visam a elevação do índice de aceitação do gestor e não a qualidade das soluções apresentadas.  É preciso deixar que os engenheiros, arquitetos, urbanistas, e principalmente usuários (potenciais e atuais) participem da construção de uma solução e que essa solução tenha como horizonte 20, 30 anos à frente, e não apenas as próximas eleições.

Também é preciso incentivar o uso do transporte público, não pela simples criação de congestionamentos monstros com a segregação dos carros particulares e ônibus, mas com o correspondente aumento da frota de ônibus para que parte desses motoristas sejam acomodados no transporte público.  Ao criar faixas exclusivas para os ônibus em São Paulo, o tempo das viagens foi reduzido, e o tempo estacionado nos terminais aumentou, pois não foram criadas novas viagens para aproveitar esse tempo ganho.  Resultado: continuou ase oferecer o mesmo número de viagens nas linhas ao longo do dia, portanto aquelas linhas já saturadas não puderam assimilar novos usuários, e não houve incentivo para que deixassem os carros em casa.  Por outro lado, os terminais ficaram abarrotados de ônibus parados, e os corredores de ônibus ficaram subutilizados no horário de pico. Isso criou uma cena revoltante para o usuário do automóvel: ele se via parado no trânsito, ao lado de uma faixa exclusiva sem os ônibus!  Revoltante.

O que talvez seja necessário é investir pesado no transporte público para que os mais favorecidos tenham incentivo para usar o transporte público.  O uso do transporte público em São Paulo é muito mais uma falta de opção do que uma escolha pelo meio mais sustentável ou menos prejudicial ao trânsito da cidade.  O gráfico abaixo mostra que são as pessoas de baixa renda, que não têm a opção de ter um veículo particular, que acabam usando o transporte público. Não há incentivo ao transporte público como opção racional de deslocamento.

Outra questão que não se altera há pelo menos cinco anos é a divisão modal das viagens.  Comparando pesquisas feitas em 2007 e 2012, a divisão entre viagens individuais e viagens coletivas mantem-se basicamente a mesma.  Ou seja, não há política de incentivo ao transporte público na cidade de São Paulo.  E nem discussões de como implementá-la no futuro próximo.  As ações do governos estadual com relação ao Metrô parecem não estar coordenadas com as ações da prefeitura no que tange às linhas de ônibus, ciclofaixas ou outras integrações e soluções que se possa implementar.

É uma pena, pois estamos vendo muito investimento feito em obras que não conversam.  Algumas estações de metrô no extremo da Zona Leste estão servidas por ciclofarsas com bicicletários que não dispõem de vagas suficientes para os ciclistas que as utiliza.  Então vê-se uma infinidade de bicicletas presas a grades e cercas próximas do Metrô. Outras, em várias regiões, até tinham bicicletários, que viviam superlotados, mas alguns inexplicavelmente fecharam e estão desativados.  Outros terminais de ônibus e estações não dispõem sequer de bicicletário, apenas suportes na calçada para prender as bicicletas.  Porém, nenhuma segurança.

Ainda temos muito que aprender com Amsterdã!

Referências:
Pesquisa de Mobilidade Urbana: http://www.metro.sp.gov.br/pdf/mobilidade/pesquisa-mobilidade-2012.pdf

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